24/11/2025 | CULTURA em Revista
Ah! Meu coração multicor à procura do Criador...
Ah! Meu coração multicor à procura do Criador...
Era um corpo esquálido, uma criança sofrida, machucada pelos reveses do sertão sedento. A fome devorara a carne tenra e parca, colocando os ossos em alto-relevo; uma obra-prima pincelada pela miséria extrema. Pediu para a mãe um copo de leite (que não havia!), virou a cabecinha para o lado e morreu. Naquele instante, meu coração era árido, faminto e, num relance, entendi que Deus, definitivamente, não é nordestino.
Seis milhões de judeus, ciganos, deficientes físicos e mentais, eslavos, homossexuais e testemunhas de Jeová padeciam as atrocidades do holocausto em Auschwitz, no início dos anos quarenta. Crianças, adultos, velhos, homens ou mulheres, morriam de fome e maus tratos. Milhares foram exterminados por fuzilamento, câmara de gás e inanição. Ao visitar aquele campo de extermínio, Bento XVI teria desabafado: “Onde é que Deus estava quando isso aconteceu?”. Cada vez que deparo com aquelas cenas a recontar a história bestial em fotos e filmes, sinto que meu coração se aperta e tenho que calar a pergunta inevitável: “E então, meu caro Papa, você já tem a resposta?”
A menina nua corre alucinada pelas ruas do que restou de Hiroshima. No degrau de entrada de uma das casas, apenas a marca de alguém que estava ali sentado quando o gigantesco cogumelo subiu aos céus do Japão pela primeira vez. Inocentes, meu Deus, inocentes! Por que permitiste? Um relógio antigo ainda marca o horário em que tudo aconteceu ou em que tudo terminou, como para o próprio tempo daquele relógio: 8:16 horas. Ah! A guerra, como opção ao diálogo! Antiética, cruel e desumana. Premido, meu coração amarelece cada vez que essa história é revisitada e, num repente, intuo que Deus não tem essa cor.
A primeira vez que vi, eu ainda era adolescente. A revista estampava uma criança negra nos braços da mãe. Ambos feitos de pele e ossos. A carne, havia muito, fora consumida para a sobrevivência daqueles resíduos já quase fósseis que a terra morta esperava a qualquer momento. A fome e a miséria assolavam Biafra. E, enquanto o homem conquistava o espaço, os negros africanos subiam aos céus. Muito mais rapidamente e aos milhares! Meu coração, desta vez enegrecido e faminto de justiça e equidade, constatava com tristeza: Deus, com toda certeza, também não é negro.
Nagasaki, Fukushima, Sumatra... Pequim, massacre da Praça da Paz Celestial! Primavera árabe... povos oprimidos pela tirania do poder. Mali... A justiça divina? É mesmo divina, jamais terrena... Tsunamis, terremotos, vulcões... enchentes, desmoronamentos, furacões... crimes... torturas... Nenhum desses eventos escolhe e preserva os homens de boa vontade. Ou será Deus quem não distingue os seus filhos? Quem sabe não seja essa a grande justiça divina: bons ou maus, ricos ou pobres, negros ou não, todos estão sujeitos às mesmas leis. É isso que me intriga e me consola. Houve um dia, em tempos bíblicos do velho testamento, em que o homem – soberbo! criou Deus à sua imagem e semelhança, creditando-lhe toda a força e todos os poderes, como convém a um Ser supremo mais-que-perfeito. Vieram os tempos do novo testamento. O povo judeu à espera de seu líder guerreiro, profetizado descendente da casa de David. Nasceu o humílimo Jesus Cristo que, preterindo as armas e a força, optou pelo verbo para pregar o amor, a fé, o perdão e a caridade. E se Deus for tal qual seu filho, humilde, feito apenas de amor e de perdão? Ou pode alguém conceber um Criador a gerar um filho que não fosse a sua própria essência? E se Deus for apenas a essência, um raio de luz a indicar os caminhos, ou simplesmente o caminho? Não seria igualmente divino e digno de ser seguido?
Jamais haverei de negá-Lo, embora não O reconheça, desfigurado pela bíblia e pelos homens. Ainda assim eu O procuro por todos os limites da compreensão. Um Deus que seja compatível com toda a atrocidade que se espraia por onde a vista alcança e a imaginação concebe, compreensível diante de toda essa inaceitável onda de violência e desrespeito que invade o cotidiano, açoita os mansos e escarnece da justiça. Assim, lento e lento, vou revelando Seus mistérios em preto e branco, na câmara escura da desinformação. E o faço não pela Sua obra – que ninguém jamais testemunhou e, não obstante, foi descrita com precisão à luz da fantasia do desconhecimento bíblico – mas pelo que não é ou não faz.
Decididamente, Deus não é seletivo. É fácil delegar-Lhe a responsabilidade pela solução dos problemas individuais ou coletivos. Nada mais vai acontecer porque seu milagre maior já foi feito: a vida de cada qual. A força que se Lhe atribui está dentro daqueles que creem: “Se tiverdes fé, do tamanho de um grão de mostarda...nada vos será impossível”, já ensinava Cristo há mais de dois milênios, segundo Mateus. Portanto, cabe-nos despertar a divindade que nos habita, por cujo poder – e somente assim – será viável a gênese de um mundo melhor e mais justo. Aos homens o que é dos homens e a Deus o que é de Deus”. Que Deus reine em paz, em sua dimensão, onde é soberano. Com certeza, há de ter tarefas muito mais importantes do que curar doentes e conter lavas e marés. Que a Luz brilhe intensa e vívida sobre nós por todos os tempos e que os nossos passos, sempre cadenciados, sigam firmes e decididos na procura de um futuro melhor. Afinal, o futuro ainda nem começou! Feliz Ano Novo a todos.

Texto extraído do livro "As Orelhas do Papel", de José Carlos Duarte Pereira.

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