20/11/2025 | CULTURA em Revista

O Limite e a Ética . Uma Linha Tênue

Explorando como limites, cultura e forças pessoais moldam a ética terapêutica e fortalecem o processo clínico rumo ao crescimento humano. Por Dra. Lilian Shreiner, psicoterapeuta.
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Ao longo de minha trajetória clínica e acadêmica, sempre observei como uma linha muito sutil separa o exercício dos limites da ética profissional. A ética, tal como definida pela APA, é uma área filosófica que investiga os julgamentos morais e a própria natureza do certo e do errado. Já os limites têm uma raiz muito mais doméstica: nascem no ambiente familiar, ainda na primeira infância, e são reforçados à medida que a criança ingressa na escola. Quando esses limites não são estabelecidos, percebo, em minha prática, que a compreensão da ética e sua aplicação tornam-se mais difíceis.

Também sempre considerei fundamental compreender como a cultura molda esses limites. Culturas como a alemã e a japonesa tendem a ser mais rígidas, enquanto italianos e portugueses, por exemplo, são mais flexíveis. Lembro-me de um aluno de San Salvador que mantinha um contato visual firme — comportamento totalmente natural em sua cultura, mas que causava desconforto na assistente social americana. Esses episódios reforçam que o olhar terapêutico deve sempre considerar o contexto cultural.

Na clínica, vejo constantemente como o ambiente familiar influencia a construção dos limites. Pais criados em ambientes rígidos muitas vezes se tornam mais flexíveis com seus próprios filhos. Isso pode gerar desafios que acabam recaindo sobre a escola, responsável por criar parte da estrutura que faltou em casa. Um caso que me marcou foi o de Jack, um menino de sete anos no espectro autista. Apesar de sua família não estabelecer regras formais, ele tinha uma inclinação natural para organização: acordava cedo, arrumava o quarto e até a lavanderia. Era um aluno de uma escola especializada e tinha bom nível de socialização.

Durante nosso processo terapêutico, comecei a valorizar essas características como pontos fortes, não como sintomas negativos. Trabalhei intensamente com a Psicologia Positiva e com a Strengths-Based Theory, que colocam o foco justamente nas habilidades do cliente. Em vez de insistir naquilo que faltava a Jack, passei a potencializar aquilo que já existia nele, sua energia, sua organização, sua capacidade de iniciativa. Aos poucos, ele foi percebendo que, mesmo quando assumia uma postura de liderança, precisaria aprender a lidar com limites também nas interações sociais. Seu próprio ambiente familiar o ajudava nisso: sendo o segundo entre três irmãos, havia situações naturais de jogo, competição e cooperação que complementavam o trabalho terapêutico.

Com o tempo, Jack passou a se destacar na escola como um bom monitor e reduziu significativamente seus episódios de irritação. Mantive um quadro de desempenho com a equipe escolar para acompanhar sua evolução, algo essencial para visualizar seus progressos concretos. Quando sua mãe engravidou, a dinâmica familiar mudou, mas Jack novamente soube canalizar suas forças para ajudar e se adaptar.

Esse caso ilustra de forma clara por que considero a Strengths-Based Theory tão ética e eficaz: ela não patologiza o indivíduo, mas ilumina seu potencial. Embora minha formação inicial seja profundamente psicanalítica, base que continuo valorizando, ao longo dos anos fui incorporando aportes existencialistas e humanistas. Rogers e Erikson reforçaram em mim a convicção de que o cliente é o maior conhecedor de si mesmo, e que nosso papel é facilitar esse processo, não substituí-lo. Ainda assim, elementos psicanalíticos como sonhos, déjà-vu e manifestações do inconsciente continuam sendo recursos fundamentais em minha prática.

Muitas vezes me pergunto se os profissionais realmente aprendem ética ou se apenas repetem conceitos. Piaget nos lembra que conhecimento verdadeiro exige assimilação, não simples memorização. E, no consultório, percebo que a vida cotidiana dos clientes, suas dores, ansiedades e urgências, frequentemente os distancia da reflexão profunda. A pirâmide de Maslow me ajuda a lembrar que é impossível pedir exploração emocional quando necessidades básicas ou emocionais mais urgentes não estão satisfeitas.

Nossos clientes chegam tomados pela negatividade e pela ansiedade. É como se, na busca por soluções perfeitas, ignorassem recursos internos que já possuem. Gosto de comparar esse processo à mineração: ao procurar ouro ou diamantes, esquecemos pedras igualmente valiosas, como ametistas ou águas-marinhas. Da mesma forma, escolhas que não parecem ideais podem ser, na prática, as mais viáveis e libertadoras.

O exercício terapêutico é, acima de tudo, um caminho de autorrealização. E acredito firmemente que esse processo deve ocorrer também no terapeuta. Por isso recomendo que profissionais busquem sua própria psicoterapia e supervisão. Não apenas para cuidar de si, mas para continuarem aprimorando seu olhar ético, clínico e humano.

A psicoterapia, portanto, é um processo conjunto de atualização, do cliente e do terapeuta. É a integração entre valores, potencialidades e experiências que nos permite solucionar conflitos do passado, lidar com os do presente e nos preparar para os desafios do futuro.

Arte: Afresco de Rafael. 
As Virtudes Cardeais, localizado na Stanza della Segnatura no Palácio Apostólico do Vaticano. 

 

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