26/10/2020 | CULTURA em Revista
Via Láctea Vaga Vagalumiando . Eloi Zanetti
Morando em um lugar ermo na Serra da Mantiqueira, longe das cidades e de qualquer fonte de luminosidade intensa, posso, nas noites limpas, observar a Via Láctea e todo o seu esplendor. Muitas vezes ela me surpreende, ora ocupando um espaço mais estreito no céu, cruzando-o de ponta a ponta, ora se espalhando por todo o firmamento – fenômeno que acontece após alguns dias de chuva, o que deixa a atmosfera mais limpa. A possibilidade de poder observar tantas estrelas causa deslumbramento aos amigos visitantes que, por morarem em cidades grandes, não estão habituados a ver tantas estrelas juntas.
Um menino, filho de um amigo, perguntado pelo pai sobre o que mais o havia admirado ao nos visitar, respondeu: a escuridão. Uma senhora, ao sair do quarto onde se hospedava, prendeu o fôlego e deu dois passos para trás de puro medo quando se confrontou com a noite escura. Uma brincadeira que faço ao andar pela trilha na floresta à noite com meus amigos é pedir a eles que apaguem suas lanternas por alguns instantes.
Para quem não está acostumado ao escuro total, imediatamente advém um momento de pavor. Alguns pedem que depressa se acendam as luzes, mas é justamente esta escuridão que nos dá a possibilidade de observar melhor as estrelas.
Costumo acordar no meio da noite para olhar o céu e, certa vez, senti estar frente a um belíssimo cenário de ópera, tal era a composição das cores das nuvens, montanhas e estrelas: pinceladas celestiais de um cinza-escuro nas bordas da paisagem, somadas à luminosidade tênue de uma lua crescente, meio avermelhada ao centro. Fiquei extasiado, como se esperando um tenor entrar em cena para dar início a um espetáculo de Verdi.
Também já vi céu estrelado e ao longe, bem de trás das montanhas, o pipocar intermitente de relâmpagos. Um acontecimento não combinava com o outro: céu limpo e relâmpagos ao fundo ao mesmo tempo. Aqui também existe um tipo de vagalume cuja luminescência está nos olhos. Em certas noites podemos observar um céu estrelado acima e, ao mesmo tempo, dezenas de luzes piscantes, oriundas do bailar desses insetos. A gente fica sem saber se olha para o céu ou para os vagalumes.
Ao estudar a origem do nome Via Láctea fiquei sabendo que os guaranis a chamavam de O Caminho do Tapir (anta) e que no seu final, na linha do horizonte, era o lugar onde ele, o tapir, ia beber água. Já os espanhóis, entre outros nomes, a chamam de Caminho de Santiago, porque servia de orientação aos antigos peregrinos para se localizarem e chegar à Santiago de Compostela ou campo das estrelas. A minha versão preferida é a da mitologia grega que diz que as estrelas são oriundas das gotas do leite derramado dos seios de Hera, sugados com tanta força por Hércules, ainda bebê, que ela, sentindo dor, retirou-o do seio e o leite derramou-se no firmamento – daí o nome Via Láctea, ou “estrada do leite”.
Aprendi também que a palavra “desejo” vem de desidere, cujo significado é “olhar firmemente uma estrela - a do desejo”, no Hemisfério Norte representada pela estrela Polar. Ela é magistralmente retratada no filme Pinóquio, de Walt Disney, na cena em que Gepeto pede que o seu boneco de madeira vire um menino de verdade.
Apesar de ter visitado vários planetários e recebido aulas ilustrativas sobre as estrelas, não consigo identificar as constelações e suas posições. Na minha simplicidade, sei localizar apenas o planeta Marte, as Três Marias e o Cruzeiro do Sul. Tampouco, apesar de ter tentado, consigo compreender o sistema que fazia os antigos navegantes se orientar pelas estrelas.
Conversando com um astrônomo do planetário de Brasília descobri que mais de 60% da poeira que encontramos em nossas casas é oriunda das estrelas, isto é, poeira estelar. Contei isso a uma senhora que fazia trabalhos domésticos em nossa casa. Tempos depois reclamei em voz alta que não entendia por que tanta poeira em casa, se estamos no meio do mato, sem estradas por perto. Ela aproveitou a deixa e disse, maliciosa: é poeira das estrelas, seu Eloi.
Eloi Zanetti – 76 anos – mais de 50 anos de experiência como consultor em marketing, comunicação corporativa, criatividade, estratégias de vendas e escritor. Diretor de comunicação do Banco Bamerindus e de marketing de O Boticário. Idealizou a Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. Criou a Escola de Criatividade de Curitiba e a Casa do Contador de Histórias. Conselheiro de diversas ONGs ambientais: SPVS, Universidade Livre do Meio Ambiente, TNC – The Nature Conservancy. Publicitário premiado, trabalhou em jornais, rádios, TVs, estúdios de produção, direção de arte, filmes publicitários e documentários. Tem artigos e livros publicados sobre marketing, comunicação, criatividade e vendas em jornais, revistas e portais especializados. Escreve livros sob encomenda para empresas e terceiros. Autor de livros sobre marketing, comunicação, vendas, crônicas e infantis.
SUMÁRIO da CULTURA em Revista nº1